E o salário, ó…


Afrânio acordou às 5h da manhã, sentindo-se particularmente injustiçado por ter de ir trabalhar em pleno 1º de janeiro, enquanto todos provavelmente dormiam, ou terminavam de se embriagar para ir dormir dali a pouco.
Porém, ele é técnico em enfermagem, e as pessoas não escolhem dia para ficar doentes. Aliás, às vezes elas escolhem algumas datas específicas para aumentar exponencialmente a demanda por glicose na veia e o número de acidentes automobilísticos. E o Ano Novo é uma dessas datas. Por isso, alguém tem de estar lá para atender os bêbados, os acidentados e pessoas que ficam realmente doentes. Nesse caso, Afrânio precisa estar lá.
Mas ele, que normalmente gosta do seu trabalho — ou, ao menos, não reclama tanto —, dessa vez estava deveras emputecido por ter de começar o plantão tão cedo, em pleno Réveillon.
Na verdade, o plantão em si não era o motivo de seu descontentamento, mas, sim, a certeza de que o chefe estava de marcação com ele.

_Esse filho da puta fez isso só para me prejudicar! Ele sempre muda minha escala de trabalho nos feriados! — esbravejou, enquanto se vestia e procurava um par de meias brancas na gaveta.

Ainda atordoado de sono — e insuportavelmente mal humorado —, pegou uma meia furada, mas ficou com preguiça de trocar e calçou o tênis assim mesmo.
Passou rapidamente pela cozinha, onde requentou um café de ontem — “café do ano passado”, pensou — e engoliu meio pão francês seco com uma colherada de geleia de morango.
Afrânio odeia geleia de morango.
Mas era o que tinha.
Ele mora sozinho e, por causa do plantão, não tinha nem um resto de ceia por perto. O jeito foi encarar a “chimia” mesmo. E o doce fez com que ele se lembrasse que a despensa estava vazia, e sentiu estafa só de pensar em ir ao supermercado.
Isso o remeteu à lembrança de que, antes, era Cidinha, sua ex-noiva — que era quem gostava de geleia de morango —, quem fazia as compras. Desde que eles romperam, aliás, isso era o que ele mais sentia falta nela.
Afrânio sentia-se perdido dentro da própria casa. Um pouco pelo sono, e muito pela irritação.

_Droga! Já estou atrasado! — exclamou, ao perceber que perdera tempo demais procurando o crachá e o jaleco, com os quais já estava vestido.
_A essas horas, já perdi o ônibus. Onde diabos enfiei o telefone daquele mototaxista do dente podre que mora aqui perto? — indagou.

Revirou as gavetas da cozinha e a pilha de correspondências que se acumulava na sala havia alguns meses — mais precisamente, desde que Cidinha fora embora.
No meio da bagunça, acabou por encontrar o telefone do mototaxista. “Cleonaldo”. E também uma conta de luz atrasada.

_Droga!, reclamou.

Sacou o celular no bolso e ligou para o mototaxista.

_Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensa… — desligou.
_Que bela maneira de começar o ano! — suspirou, num misto de desânimo e indignação.

Lembrou-se da velha bicicleta que seu pai havia “guardado” em sua casa e decidiu que era assim mesmo que iria trabalhar.
Mas o pneu estava murcho, é óbvio.

_Foda-se. Vou empurrar essa joça até o Posto do Bigode, e lá calibro os pneus.

Empurrou a bicicleta, capengando, por quatro quadras, até chegar ao posto. Para sua surpresa, encontrou Cleonaldo e sua galera estranha, todos completamente bêbados, ouvindo um CD péssimo no som do carro de um deles.

_E aí, cara! Tá indo trabalhar? Acho que daqui a pouco vou lá te visitar, porque hoje eu só paro de beber quando tiver que tomar glicose na veia! — riu Cleonaldo, deixando à mostra aquele dente careado cuja aparência tanto agoniava Afrânio.
_Beleza, cara, feliz Ano Novo! — respondeu Afrânio, contrariado.

Terminou de encher os pneus da magrela e pensou consigo mesmo: “Gente! Detesto gente! Por que não escolhi ser veterinário? Pelo menos, os cachorros não falam besteira! E não ficam bêbados… Principalmente no Ano Novo.”


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