Anjos e demônios


Dizem que todo mundo tem um anjo e um diabinho, cada um ao lado de um ouvido, sussurrando ideias e conselhos – e cabe a cada um de nós decidir qual deles escutar.

Ela passara a vida dizendo, debochadamente, que tinha dois diabinhos – ou que, se tinha um anjo, era surda daquele ouvido.

Mas nunca dera ouvidos – de verdade – a nenhum deles. Sua petulância era tanta que ela se achava acima do bem e do mal – ou, no mínimo, intocável por eles.

Porém, um dia, pegou-se pensando em como, em diversos momentos, um pouco de equilíbrio teria lhe feito bem.

A essa altura, porém, após décadas de seu ceticismo desdenhoso, tanto o anjo quando o diabo já haviam desistido dela. Afinal, ninguém é de ferro, nem mesmo seres sobrenaturais, diabólicos ou celestiais – todos têm o seu limite.

O estado do anjo, coitado, era deplorável. Se ele fosse visível aos olhos humanos, seria flagrado deprimido, sentado numa calçada imunda, cabisbaixo e maltrapilho, resmungando ter falhado miseravelmente.

Do outro lado, o diabo não estava na melhor. Bebia sua vodka barata, esbravejando e sentindo-se impotente e obsoleto. Ela sempre conseguira tomar as piores decisões possíveis, mesmo sem a ajuda dele – o que é um insulto imperdoável para um demônio.

Até que um dia ela percebeu que o silêncio estava exagerado. Ensurdecedor. Passar a vida ao largo dos conceitos ordinários de certo e errado, de bem e mal, de moral ou imoral, era divertido para ela. Mas, a bem da verdade, ela gostava do barulho. Tanto quanto alguém que dirige com o som no último volume, porém com as janelas abertas, permitindo aos acordes da guitarra misturarem-se ao caos do trânsito.

Mas, o barulho havia desaparecido. E isso, sim, era assustador.

Ela não mais sabia discernir o que sentia. Era como se andasse pelas ruas usando EPI, bloqueando todos os sons ao seu redor, numa surdez sepulcral. Sua solidão, neste momento, era impenetrável – mas, não mais pelos outros, e sim por ela mesma. Desta vez, não era uma opção dela isolar-se de todo e qualquer contato com o mundo. Era como se o mundo tivesse desistido dela.

E ela desejou, pela primeira vez, ouvir conselhos maléficos de um demônio perverso, ou, de preferência, palavras sábias de um anjo bom.

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